Ao discorrer sobre in dubio pro societate, deve-se ter em reflexão a Teoria Geral da Prova. O processo penal é instrumento de reconstrução do fato histórico. É por meio de técnicas de recognição que o juiz firma seu convencimento, seu sentimento acerca do caso posto à apreciação para bem decidir acerca do rumo do processo, assim considerado como situação jurídica (Goldschmidt). Essa atividade é bem explicitada por Enrico Ferri ao descrever:
“(…) à ação do juiz para garantia dos direitos individuais e sociais, em cada julgamento penal – que é colheita, discussão e decisão de provas -, é necessário estabelecer: 1° se o fato foi realmente cometido (prova genérica); 2° se o fato cometido constitui crime (prova jurídica); 3° se o crime foi cometido pelo acusado (prova específica); 4° em que condições pessoais e de ambiente foi cometido o crime (prova psicológica) e , portanto, com as leis penais vigentes, se por ele é ou não moralmente responsável; 5° qual o grau de sanção repressiva posta pela lei que deve ser estabelecido contra o réu (conclusão judicial)”.
Nesse passo, a atual gestão de provas põe-se como a espinha dorsal do processo penal, a partir de dois principíos fundantes: 1) princípio dispositivo: adotado no sistema acusatório, pelo qual a gestão da prova está a cargo das partes (juiz-espectador); 2) princípio inquisitivo: adotado no sistema inquisitório, pela qual a gestão da prova está a cargo do julgador (juiz-ator inquisidor). Nesse tanto, o Código de Processo Penal vigente adota o princípio dispositivo, ao prescrever que ônus da prova compete a quem alegar (art.156).
Dessarte, é na fase de instrução criminal que as partes hão de produzir todas as provas necessárias a comprovar suas alegações, notadamente o órgão acusador, porque propõe a imputação. No procedimento do tribunal do júri, finda a instrução, a pronúncia deve ocorrer apenas quando há possibilidades concretas de virtual condenação pelo tribunal do júri, e não mera presunção que somente protai o julgamento pra o plenário, quando, desde logo, o Estado-juiz poderia ter declarado a inviabilidade de pretensão acusatória. O juiz criminal contemporâneo deve ser o fiel escudeiro das garantias fundamentais. No dizer de Marcelo Semer, o magistrado é o epicentro dessas garantias.
Essa teorização em nada vai de encontro à competência constitucional do tribunal do júri, que somente reconhece sua instituição, e que inexista filtro processual até chegar ao seu julgamento. O plano teorético desta digressão está na teoria geral da prova no processo penal, ou seja, na gestão de provas à luz do princípio dispositivo. Em outas palavras: os indícios suficientes de autoria devem ser entendidos como elementos robustos e capazes de autorizar a sustentação de acusação no plenário do tribunal do júri, a evitar, como ocorre em muitas casos, que o órgão acusador se posicione pela pronúncia do acusado (primeiro estágio) para, no plenário, dirigir-se ao conselho de sentença e asseverar (segundo estágio) que não há provas concretas para sustentar a acusação.
Para isso, oportuno destacar a moderna Teoria Constitucionalista do Processo, que, em linhas gerais,preconiza a estreita vinculação entre processo e Constituição, a focar-se no estudo sistemático de conceitos e instituições processuais ínsitas na Constituição da República, e a bem observar, notadamente, a hierarquia das fontes. A propósito deste descabido princípio – in dubio pro societate -, Aury Lopes Jr. faz uma análise precisa de seu (des)sentido atual:
“Noutra dimensão, bastante problemático é o famigerado in dubio pro societate. Segundo a doutrina tradicional, neste momento decisório deve o juiz guiar-se pelo ‘interesse da sociedade’ em ver o réu submetido ao Tribunal do Júri, de modo que, havendo dúvida sobre sua responsabilidade penal, deve ele ser pronunciado. […] Questionamos, inicialmente, qual é a base constitucional do in dubio pro societate? Nenhuma. Não existe. Por maior que seja o esforço discursivo em torno da ‘soberania do júri’, tal princípio não consegue dar conta dessa missão. Não há como aceitar tal expansão da ‘soberania’ a ponto de negar a presunção constitucional de inocência. A soberania diz respeito à competência e limites ao poder de revisar as decisões do júri. Nada tem a ver com a carga probatória”.
Tal entendimento também é preconizado com rigor por Paulo Rangel:
“Na pronúncia, segundo doutrina tradicional, a qual não mais seguimos, impera o princípio in dubio pro societate, ou seja, na dúvida, diante do material probatório que lhe é apresentado, deve o juiz decidir sempre a favor da sociedade, pronunciando o réu o mandado a júri (…). Entendemos que, se há dúvida, é porque o Ministério Público não logrou êxito na acusação que formulou em sua denúncia, sob o aspecto da autoria e materialidade, não sendo admissível que sua falência funcional seja resolvida em desfavor do acusado (…)”.
Perfilado ao descabimento atual do in dubio pro societate, Guilherme de Souza Nucci:
“É preciso cessar, de uma vez por todas, ao menos em nome do Estado Democrático de Direito, a atuação jurisdicional frágil e insensível, que prefere pronunciar o acusado, sem provas firmes e livres de risco. Alguns magistrados, valendo-se do criativo brocardo in dubio pro societate (na dúvida, decide-se em favor da sociedade), remetem à apreciação do Tribunal do Júri as mais infundadas causas (…)”.
D’outro tanto, porque o in dubio pro societate é tratado como princípio, é mister que relembremos a verdadeira conceituação de princípio em Humberto Ávila:
“Os princípios são normas imediatamente finalísticas, primariamente prospectivas e com pretensão de complementariedade e de parcialidade, para cuja aplicação se demanda uma avaliação da correlação entre o estado de coisas a ser promovido e os efeitos decorrentes da conduta havida como necessária à sua promoção”.
Depreende-se, pois, que o inexplicável in dubio pro societate nada tem a ver com princípio, porquanto não se trata de nenhuma norma imediatamente finalística. Percebe-se que pronunciar o acusado na dúvida porque isso seria um princípio em favor da sociedade é algo incompreensível no atual estádio de evolução do Direito Processual Penal à luz da visão constitucional.